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A Árvore Dos Enforcados
Quando a
norte-americana Eletronics Company Empire resolveu montar sua filial
brasileira em nossa cidade, eu era um jovem de vinte e cinco anos, havia
me formado em informática na universidade local e ansiava por encontrar
um emprego seguro que influenciasse minha namorada a decidir-se
favoravelmente ao meu pedido de casamento. Samira estava relutante a
respeito do matrimônio simplesmente porque não tínhamos estabilidade
financeira, ela trabalhava como tradutora free-lance e seu pai era um
homem amargurado, abandonado pela esposa e que via a vida se esvaindo
enquanto media areia num depósito de material de construção; eu era um
caipira órfão que me sustentava com as parcas rendas de uma criação de
cabras, galinhas e algumas vacas leiteiras de um sítio recebido de
herança de meus pais. Um sítio que era considerado pela população como
lugar amaldiçoado – a cem metros da única casa da propriedade, uma
edificação de dois andares, velha, de madeira, grande e sombria, havia
uma imensa árvore centenária, esgalhada, com a terrível fama de atrair
pessoas desesperadas.
Várias vezes
por ano alguém cingia uma corda no pescoço e se dependurava nos seus
galhos robustos, rugosos e fortes. Eu, que tinha meu quarto no segundo
andar, estava tão acostumado com a violência daquelas mortes que nem
dava muita importância – desde pequeno acordava muitas vezes com o vento
uivando de maneira solene, ia à janela e observava um corpo balançando
solitariamente, a coisa era até poética quando havia uma lua cheia no
céu parcialmente nublado. Meus pais – quando eram vivos – ligavam para a
polícia. Depois que eles morreram num acidente com o nosso fordinho de
antanho, eu passei a encarregar-me de avisar as autoridades.
Com o tempo, os
suicídios tornaram-se uma rotina tão grande que os agentes da perícia
médica deixaram de vir com os policiais para atender aos chamados. Os
meganhas retiravam o cadáver da forca, punham-no dentro do camburão e
zarpavam. Já não enchiam o meu saco exigindo depoimentos. O morto
geralmente era um viciado em tóxico, um endividado em jogos, uma jovem
desiludida, um arruinado nos negócios – gente desse naipe. De vez em
quando um malaco qualquer desistia do suicídio na última hora, ia embora
e a corda com seu laço lúgubre ficava pendurada num dos galhos da
árvore. Da última vez contei as forcas ainda virgens balançando ao sabor
dos ventos noturnos – havia quinze desses arranjos.
***
Samira odiava
meu pedaço de terra, vivia insistindo para que eu vendesse tudo,
comprasse um apartamentozinho na cidade, arranjasse um emprego decente,
que me tornasse uma pessoa normal, comum, um cidadão que no seio da
sociedade não fosse olhado como aberração. A instalação da empresa
norte-americana em nosso município pareceu-me uma bênção do céu. Assim,
contei a Samira das minhas pretensões empregatícias na Eletronics
Company Empire e, claro está, ela vibrou de entusiasmo. Fiz uma ficha na
empresa, uma semana depois fui chamado para a entrevista. Foi aí que o
bicho pegou – eu teria que falar com uma psicóloga da firma e, ainda,
com o diretor-geral, um gringo chamado Victor Roddick, e o cara tinha
dificuldade em dizer até mesmo bom dia em português. Quanto a mim,
conseguia ler e escrever em inglês com desenvoltura, mas não entendia os
fonemas e era incapaz de pronunciar a mais corriqueira das frases.
Minha língua dava nó dentro da boca, eu balbuciava coisas ininteligíveis
que provocavam risos em qualquer um que estivesse por perto.
– Vou me
informar, Ditão, se posso servir de intérprete – disse Samira. Ora, como
é que eu não tinha pensado naquilo? Samira falava inglês corretamente e
não dava vexame quando se aventurava no árabe, língua dos ancestrais da
mãe. Minha garota foi aos escritórios da empresa, passou por várias
salas conversando com subalternos até chegar ao diretor Victor Roddick –
o que não consegue uma jovem bela, inteligente e determinada? O homem
todo poderoso mandou que Samira me levasse à sua presença.
No dia e hora
determinados, Samira foi ao salão de beleza e deu uma encaracolada no
seu longo cabelo negro, maquilou-se, colocou um vestido vermelho
decotado generosamente e com a barra um palmo acima dos joelhos, calçou
sapatos salto-agulha e lá fomos nós para a entrevista, eu com o braço em
torno de seus ombros, todo orgulhoso de namorar a garota que era, sem
dúvida, a mais bela da cidade. Sentia-me capaz de mover o mundo com um
peteleco do dedo mindinho. Samira, pequenina perto dos meus quase dois
metros de altura e cento e dez quilos de músculos, parecia uma avezinha
implume protegida sob as asas do condor-rei. O diretor Victor Roddick
recebeu-nos à porta de seu gabinete de trabalho, conduziu-nos para duas
poltronas postadas à frente da grande escrivaninha de madeira maciça.
Roddick me surpreendeu logo de cara. Não era semelhante à imagem que eu
fazia de um dirigente de uma empresa do porte da Eletronics Company
Empire. Se não tivesse todos os membros em tamanhos normais, poderia
facilmente ser chamado de anão. Não devia ter mais que um metro e meio
de altura, excessivamente magro, cabelos totalmente brancos, a pele do
rosto parecia um pergaminho milenar cheio de dobras, vincos e ranhuras.
Sua idade poderia variar entre os setenta e noventa anos.
O diretor
sentou-se por detrás da mesa descomunal e ficou nos olhando – minto,
ficou olhando Samira, ela cruzara as pernas e um bom pedaço do seu
magnífico par de coxas magnetizava os olhos pequenos, cinza, úmidos do
gringo. Os dois começaram a conversar, Samira ria com todos os dentes,
passava a mão pelos cabelos, se esmerava na arte da sedução, muito
coquete, num atrevimento que só; o homem todo simpaticão parecia estar
sacando do repertório americano engraçadíssimas piadas de salão, aquelas
anedotas execráveis que tantas vezes já vimos em filmes de comédia. E
foi assim. Por mais de meia hora os dois trocaram impressões, falavam
nisso e naquilo sem que eu entendesse pissiricas. Só fui abrir a boca –
para dizer um tímido até logo ao homem – depois que Samira e Victor
Roddick levantaram-se de seus assentos e deram um formidável aperto de
mão. Apenas quando caminhávamos pelos corredores do prédio
administrativo é que Samira dignou-se a me dirigir a palavra.
– Pronto,
Ditão, o emprego é seu. E se prepare para mais uma boa notícia, eu
também fui contratada. Vou ser secretária do Dr. Victor Roddick. Não é a
maravilha das maravilhas? Agora, neste momento, o nosso diretor já deve
estar telefonando para o Departamento de Pessoal. A gente tá indo pra
lá assinar a papelada.
***
Fui designado
para o setor de montagem de softwares e uma semana após o diretor Victor
Roddick me convocou para uma reunião em sua sala. Com Samira servindo
como intérprete, fiquei sabendo que seria indicado para o cargo de
supervisor de serviços gerais. Mas para tanto eu precisava fazer um
estágio de seis meses na matriz da Eletronics Company Empire, em
Detroit. Fiquei de pensar no caso, na verdade não estava disposto a ir
para uma terra estrangeira, tinha consciência de ser um caipira de
difícil adaptação. Naquela noite, nos lençóis do Motel Alameda, Samira
convenceu-me que eu não devia perder a chance de subir hierarquicamente
dentro da empresa. Tirei meu passaporte e quinze dias depois viajei de
avião para a cidade considerada por muitos americanos como a mais
violenta dos Estados Unidos. Não vi nenhum tipo de violência,
principalmente porque me entoquei no hotel reservado pela empresa. Era
do trabalho para casa, durante seis meses aprendi o que tinha que
aprender na matriz da Eletronic Company Empire – inclusive a falar o
idioma inglês – e não dei nem mesmo um passeio pelo centro da cidade. Eu
era só tristeza, saudades de Samira, dos meus animais de criação que
ficaram sob os cuidados de um primo beberrão, do meu pedacinho de terra
improdutiva e até mesmo da árvore centenária com seus galhos retorcidos
cheios de forcas penduradas como se fossem frutas.
Retornei do
estágio em Detroit e soube de supetão que Samira estava morando numa
cobertura duplex da Avenida Higienópolis, região central da cidade. Em
companhia do velhinho mais para anão, o diretor Victor Roddick. O pai de
Samira, outrora o homem mais amargurado que eu já tinha conhecido, não
era mais o empregadinho no depósito de materiais de construção – com os
bolsos repletos de dólares americanos, havia adquirido o estabelecimento
comercial, esbanjava sorrisos e, montado num carro recém-adquirido,
novinho em folha, era o cara da vez nos prostíbulos disfarçados de casas
de massagem. As surpresas não pararam por aí: assim que reassumi meu
cargo de supervisor geral da Eletronics Company Empire, fui chamado ao
Departamento de Pessoal, lá recebi de uma funcionária despida de
sorrisos um papel assinado pelo diretor Victor Roddick – eu estava
demitido. E mais: por justa causa. O documento estava tão bem redigido,
tão bem articulado, apontava tantas desqualificações de meu caráter e
tantas falhas funcionais na execução das minhas tarefas operárias que
nem pensei em mover uma ação trabalhista. Seria o meu advogadinho –
indicado pelo Estado – contra o batalhão de jurisconsultos amealhados a
peso de ouro pela maldita empresa.
Pobre é assim,
quando é fodido pelos poderosos, a coisa tende a estraçalhar todas as
pregas do fiofó. Desanimado, desiludido, massacrado pelas injustiças,
com o rabo entre as pernas voltei para o meu sitiozinho, para a
companhia de minhas cabras, galinhas e vaquinhas leiteiras.
***
Passaram-se
cinco anos, nesse tempo arranjei uma amante chamada Eunice, uma sitiante
viúva, ainda jovem, que me recebia em sua casa e nunca pôs os pés em
minhas terras; durante esses anos melhorei um pouquinho minha condição
financeira após investir na criação de codornas e coelhos e, também,
passei a ter visões com os enforcados na minha árvore, todos eles, desde
o tempo em que comecei a me conhecer por gente. Acordava de noite com
os ventos uivando, olhava pela janela e lá estavam aquelas criaturas
desesperadas balançando nos galhos rijos e grossos. Uma árvore carregada
de cadáveres esbatidos pela claridade lunar. Nunca consegui esquecer
Samira, não porque ainda estivesse apaixonado, mas por causa da tristeza
provocada pela sua traição. Porém, não odiava a garota, na verdade
tinha até uma ponta de pena por vê-la, graças à ambição desmedida,
desperdiçando os melhores anos de sua vida em companhia de um velhinho
que poderia ser seu avô – que digo? – seu bisavô. Meu ódio se
concentrava em Victor Roddick, o grandíssimo canalha, era tanto ódio que
sobrava animosidade para os demais diretores da Eletronics Company
Empire.
***
Um dia recebi
com grande surpresa um enviado da diretoria da empresa. O sujeito trazia
uma pasta com muitos dólares e a proposta de aluguel por uma noite da
minha propriedade. Explicou-me que os chefões tinham ouvido falar da
Árvore dos Enforcados, se divertiram muito com os comentários
supersticiosos envolvendo fantasmas e outras fantasias monstruosas e,
por puro gozo, queriam fazer uma festa à grande em comemoração ao
Halloween, uma festa bem ali, sob minha árvore amaldiçoada. Eu não sabia
o que significava Halloween, o carinha me falou longamente a respeito
da tradição americana ao dia consagrado às bruxas, era tanta besteira
junta que acabei rindo e topei a parada.
No dia da festa
de Halloween fui para a cidade, comprei algumas garrafas de cachaça,
conversei longamente com os conhecidos a respeito da maluquice dos
gringos, demos muitas risadas dos panacas, avisei a todos que estaria em
casa da minha amante, íamos fazer quentão, quem quisesse que fosse lá
tomar uns tragos. Comprei brinquedos para as três crianças pequenas de
Eunice e fui para o sítio dela. Na manhã seguinte fui acordado por três
policiais que me informaram: o diretor Victor Roddick, da Eletronics
Company Empire, fora encontrado devidamente pendurado num galho da
Árvore dos Enforcados e eu, claro, era o principal suspeito de um
possível assassinato. Eu tinha meu álibi, sólido como rocha. Ali estava
Eunice, minha companheira, para confirmar que passáramos a noite juntos,
tomando quentão e comendo broas de milho. Havia também as crianças,
elas tinham ido dormir tarde da noite e poderiam testemunhar a meu
favor. Sim senhor, meu álibi era incontestável.
O que ninguém
sabia é que, se Eunice bebeu quentão como um gambá, eu mal molhei a boca
com o preparado alcoólico. Por volta das dez horas da noite colocamos
as crianças na cama, às onze e meia Eunice dormia esparramada no sofá,
embriagada. À meia-noite fiz o percurso entre o sítio dela e o meu numa
velocidade de maratonista e, por uma sorte absurda, encontrei a cúpula
diretiva da empresa em final de festa, havia litros de uísque, vodca e
gim espalhados em torno da Árvore dos Enforcados, os gringos arrastavam
pelo chão, uns vomitando, outros já inconscientes. Esperei até que todos
mergulhassem nas brumas alcoólicas, depois ajuntei o corpinho minúsculo
de Victor Roddick pela cintura, joguei-o nos ombros e subi a árvore com
a categoria e agilidade de um felino. Para minha surpresa, Roddick saiu
da inconsciência e ficou sóbrio num piscar de olhos. Começou a se
debater e a gritar pedindo socorro. Não adiantava nada, seus amigos
chafurdavam no coma alcoólico, não iriam ajudá-lo de jeito nenhum.
Ajeitei uma das forcas no pescocinho fino do diretor, frágil como uma
haste de flor.
– My God! – ele gemeu.
– Sem my God,
meu chapa – eu disse. E soltei o gringo no espaço. Desci da árvore e
observei o sujeitinho com os olhos esbugalhados e a língua de fora. Um
belo espetáculo, sem dúvida. Uma visão maravilhosa. Em seguida voltei
para o sítio de Eunice, bebi alguns copos de pinga pura e tratei de
acordar minha amásia com xícaras e xícaras de café, rimos da bebedeira,
dançamos pela sala, trôpegos, bêbados, felizes, transamos alucinadamente
e por fim dormimos.
Pelo menos até
agora as autoridades não descobriram o que aconteceu realmente na festa
de Halloween dos gringos. Da minha parte, daqui da janela do segundo
andar de minha enorme casa de madeira, frequentemente vejo o espectro do
diretor Victor Roddick, entre os demais suicidas de outras épocas,
balançando suavemente na ponta da corda, açoitado pelo vento noturno e
palidamente banhado pelos raios da lua. É um êxtase.
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